quarta-feira, janeiro 21, 2009

Vem por aqui..


Por vezes custa sair da cama, não por estar frio ou por se ter sono, apenas porque não temos força, energia, vontade.. "Para quê?" pensamos.. "Estou farto, cansado.."

O nosso caminho nem sempre é fácil e por vezes é mesmo muito difícil, contudo é aquele que escolhemos (curiosa esta palavra.. caso não acrescente mais nada não é possível saber se me estou a referir ao presente ou ao passado.. talvez a ambos neste caso..) seguir e apesar de nos parecerem frases "cliché" o que é facto é que "O que não nos mata torna-nos mais fortes" funciona mesmo! ;)

Há dias em que é uma vitória ter dado uns quantos passos para trás e mantermo-nos em pé.. ou pelo menos dispostos a continuar..
É que a pancada às vezes é mesmo muito forte..
Este tema faz-me lembrar um dos poemas mais bonitos que conheço e que penso que vem a propósito ..
"Cântico Negro"

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços, E nunca vou por ali...


A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém. -
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!





José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'









3 comentários:

Anónimo disse...

Se soubesses o QUANTO adoro esse poema... Os últimos versos sei de cor, porque é lindddooo!

Portalegre "emana" a José Régio, que apesar de não ter nascido lá, viveu ali a maioria da sua vida!! Esta zona, esta cidade inspirou a alma deste escritor, que sempre o deixou bem patente nos poemas que escreveu...

Este poema é realmente transmissor de uma energia e força, de uma garra... tem um especial poder de, fazer sair das profundezas mais profundas do nosso ser, uma tal vontade de o ler em voz alta e... declamar, mesmo sem nunca o termos feito, mas sim, sentir a raiva da decisão!! É LINDDOO!!

Karlytus disse...

Isabel: Tens razão, é realmente um poema magnífico e dos meus preferidos, claro!

Gosto de ler poesia em voz alta e qd o faço fico sempre c a sensaçao de q lhe dei um pouco de mim tb.. como o actor q veste a personagem e a encarna sabes?

Beijitos!

Marina disse...

É realmente um grande poema, no entanto se queremos acreditar nele, senti-lo e torná-lo nosso, temos também que saber que para ser livre, livre da forma como José Régio diz ser, é preciso ser louco ("eu tenho a minha loucura"), e ser louco não é cometer loucuras de vez em quando. Eu sinceramente ainda estou demasiado ligada a um conjunto de conhecimentos (que me foram involuntariamente impostos durante o meu crescimnto)que me impedem de deliberadamente ser louca. Se um dia o for, tenho a certeza que já não terei consciência de o ser. Por isso, até lá (se lá chegar) continuarei a sentir que por vezes custa-me sair da cama. E que sim, por vezes não há sequer razão para continuar.

E quanto à máxima: "o que não nos mata torna-nos mais fortes" acrescentaria: e mais insensíveis. Com tudo o que isso traga de bom e de mau.

Mas semdúvida que é um poema cheio de força. Bem escolhido ;)